SHAME (2011) - PAPO DE PSICANÁLISE
Direção: Steve McQueen
Elenco: Michael Fassbender, Carey Mulligan, James Badge Dale, Nicole Beharie
Nome Original: Shame
Ano: 2011
Duração: 101 min
País: Reino Unido
Classificação: 18 anos
Gênero: Drama
SINOPSE
Em Shame, o ator irlandês Michael Fassbender interpreta Brandon, um executivo charmoso que é viciado em sexo. A bem-sucedida vida profissional distoa do comportamento sexual compulsivo do personagem, cuja distração é seduzir mulheres e buscar prazer na internet.
A inesperada visita de sua irmã Sissy, interpretada por Carey Mulligan, desestrutura a rotina do solitário empresário. Enquanto Sissy clama por atenção, Brandon precisa lidar com seus desejos e vê nas ruas a solução para suas buscas sexuais. Sua parente mais próxima tentará ajudá-lo a lidar com sua obsessão.
SOFÁ NIGHT COM CINEMA
Na minha modesta opinião, o Taxi driver dos anos 2000. Magnífico...Não deram Oscars à produção por causa do preconceito com produções que retratam sexo, como se não fosse algo absolutamente normal. Ainda que Travis caminhe para a explosão, e Brandon para a implosão, ambas situações se encarregam de destruir o ser. Ambos buscam sentido na vida que acham sem sentido, tentando satisfazer seus desejos reprimidos, hora fazendo sexo, hora tentando fazer algo de bom para alguém, mas o resultado de cada ação só os leva à frustração, e novas tentativas.
ANÁLISE
Não poderia ter melhor locação para Shame, filme do britânico Steve McQueen, do que Nova York, símbolo máximo do mundo cosmopolita do século XXI. Brandon Sullivan, interpretado por Michael Fassbender, também poderia viver em qualquer outro grande centro urbano, como Berlim, Londres e São Paulo, mas o personagem é perfeito na pele do executivo bem-sucedido de Manhattan, que consegue manter sua privacidade — isola sua vida íntima da profissional—, mesmo sendo um homem viciado em sexo, que a psiquiatria define como dependência sexual.
Desde a primeira cena, fica explícita a compulsão sexual de Brandon: ele é insaciável e pratica sexo a todo o instante, seja com garotas de programa, virtualmente com stripper de sites on line, masturbando-se ou em lugares públicos e boates gays. Morando num edifício com uma visão panorâmica da cidade, a rotina de Brandon só é quebrada com a chegada de Sissy (Carey Mulligan), sua irmã, que chega sem avisar. Mais do que ter de dividir o espaço com a irmã, na convivência ele tem de enfrentar talvez sua maior limitação: lidar com seus sentimentos mais profundos e o amor. Esta dificuldade do personagem fica explícita em algumas cenas: quando sai com uma colega do escritório para jantar e, questionado, ele admite que quatro meses foi seu recorde de duração de uma relação amorosa. Dias depois eles vão para a cama e, para surpresa geral, ele brocha. A relação com a irmã, em diversas passagens, revela também a dificuldade de Brandon em relacionar-se afetivamente com o outro.
O próprio título do filme, vergonha, retrata o estado de espírito permanente do personagem: parece que saciado momentaneamente, Brandon sente vergonha do sexo que acabara de praticar. Num artigo publicado no último dia 22 na Ilustrada/ Folha de S.Paulo, o psicanalista Contardo Calligaris diz que mais que se preocupar com as fantasias e as práticas sexuais do dependente, a psiquiatria deve se ater às vergonhas e culpas deste paciente. E completa: “Diante de um paciente (dependente sexual), só poderia, se ele quisesse, tentar disciplinar a culpa e a vergonha que perturbam sua vida e estragam seus prazeres”.
Muitos espectadores se identificam de imediato com Brandon, não só por sua agitada e compulsiva vida sexual, mas pelo tipo de relação social que se vive hoje em dia nas grandes metrópoles. Sexo é fácil de fazer, como num piscar de olhos. Já amar e manter vínculos afetivos com o outro parece cada vez mais inatingível. Quando se está diante de alguém interessante, que há chance de um investimento maior, ambos recuam com medo de amar, com medo de seus próprios sentimentos. Pércicles Cavalcanti sintetiza este padrão de comportamento atual na canção Medo de Amar, que Adriana Calcanhotto interpreta divinamente.
PAPO PSICANALÍTICO
Isolamento e angústia:
Chamo a atenção para o clima emocional que, a meu ver, permeia o filme do início ao fim. Grande parte das cenas são filmadas em prédios hermeticamente fechados, com vidros transparentes. Tanto a casa de Bradon quanto o seu escritório são assim: caixas de vidro que me remeteram à uma insuportável sensação de sufocamento. Também associei estes cômodos / caixas de vidro à vitrines, na medida em que tudo fica exposto para o mundo exterior, mas nada pode ser de fato conhecido intimamente porque há barreiras intransponíveis entre o interno e o externo.
Da mesma forma que o sexo (há algumas cenas que mostram casais tendo relações sexuais que poderiam ser vistas pelas pessoas na rua) passa a ser vivenciado como uma mercadoria exposta na vitrine e que tem como único propósito o alívio de angústias impensáveis. Penso que esta é uma contradição típica do nosso momento histórico: apesar da exposição que vivemos na Internet onde tudo pode ser absolutamente exposto, intimidade e encontro fértil com o outro são temidos.
Desta forma, acredito que o filme retrata, sobretudo, uma das contradições do homem contemporâneo entre sua imagem pública de pessoa poderosa e bem-sucedida contraposta à sua vivência privada, que é de extrema solidão e isolamento.
Outro impacto que senti, remete à outra questão que gostaria de discutir: apesar de haver durante todo o filme várias cenas de sexo, as mesmas expressavam, pelo menos a me ver, uma profunda dor e desamparo psíquico. Eram cenas angustiantes e não excitantes.
Mas porque todas estas cenas de sexo explícito não provocam excitação e sim angústia?
Acredito que isso ocorria pela função que o sexo tinha na vida de Bradon, que parecia recorrer à uma excitação sensorial visando evacuar angústias primitivas intensas.
Conforme assevera Bion em seu livro “Estudos Psicanalíticos Revisados”, diante da impossibilidade de se sonhar algumas experiências catastróficas, o indivíduo busca atividades sensoriais que visam evacuar suas angústias (que ele chama de elementos beta), algo que parecia ocorrer no caso do personagem.
Desta forma, a excitação sexual não era vivenciada como um encontro verdadeiro e afetivo com as mulheres com as quais se relacionava, mas como atividades masturbatórias capazes de aliviar sua angústia. Ressalta-se que no momento em que ele começa a se interessar verdadeiramente por uma mulher, ele não consegue ter ereção, provavelmente porque a penetração afetiva fosse demais para ele suportar.
Vínculo incestuoso:
Há um outro elemento a ser considerado no filme: Bradon tinha uma irmã suicida e extremamente perturbada que fazia manobras para excitá-lo e invadi-lo com sua sexualidade infantil e perversa. Desta forma, o filme mostra que havia presente ali o perigo do incesto e a concretização de uma relação sexual entre ele a irmã.
Uma das hipóteses que é possível aventar, neste caso, é que, pelo medo de concretizar seus desejos incestuosos com a irmã, Bradon necessitava anestesiar-se em relações masturbatórias e sensoriais com mulheres que não podiam ter qualquer significado emocional para ele, única saída possível para se evadir da concretização do incesto.
Há, nesse sentido, cenas particularmente angustiantes e que remetem à ausência de barreiras e de limites entre ele e sua irmã: 1) sua irmã invade o seu apartamento e ele a vê nua em seu banheiro; 2) ela tem uma relação sexual com o chefe do irmão em sua cama, algo que certamente desperta em Bradon desejos incestuosos e assassinos. Nesta cena, Bradon, intoxicado com a atuação da irmã, necessita correr por horas a fio para evacuar tamanha angústia; 3) Sua irmã vai durante a madrugada se deitar com ele na cama.
Em um dos momentos mais angustiantes do filme, Bradon pede para ela vá embora de seu apartamento e ela diz a ele que não há do que eles se envergonharem, o penso ser sua alusão ao intenso vínculo incestuoso que os ligava. Bradon neste momento é firme e ela parte, mas logo em seguida, descobre que ela tentou suicídio. Moral da história: tentativas de se evadir do vínculo incestuoso levam à morte e à ataques violentos e suicidas.
A partir deste momento Bradon vive o que eu chamaria de uma completa despersonalização e fragmentação: vai à uma boate gay e encontra-se com homens na arena homossexual, conforme descreve Bollas. Este autor psicanalítico muito interessante, afirma que o mundo promíscuo das boates gays costuma ser buscado como uma tentativa desesperada de apagamento e morte psíquica, algo que penso ter motivado Bradon naquele instante.
Diante da impossibilidade de fugir ao aprisionamento incestuoso, Bradon se despersonaliza e busca na arena homossexual o apagamento de si mesmo.
O filme termina sem qualquer possibilidade de esperança: Bradon mistura-se à corpos despersonalizados: bundas, peitos, pênis – objetos parciais (ou bizarros, nos dizeres de Bion), afogando-se completamente em vivências psicóticas e despersonalizantes.
Desta forma, creio que o filme retrata com maestria (da mesma forma que o Cisne Negro conseguiu retratar) o angustiante processo de enlouquecimento ou, como diria Bion, quando as partes psicóticas da mente se sobrepujam às não psicóticas, tomando conta da personalidade do sujeito quase por inteiro.
Vergonha:
Para finalizar, acho que a escolha do título também merece algum destaque. Vi alguns comentários sobre o filme que enfatizavam aspectos culturais e sociais da sexualidade, particularmente, a americana.
Discutia-se o fato de os EUA ser uma nação que lida muito mal com a sexualidade por ser uma sociedade extremamente reprimida. Segundo os críticos, é exatamente pela intensa repressão sexual vivenciada pelos americanos que a conduta sexual individual passou a ser medicalizada e patologizada, exatamente como Foucault já havia chamado atenção. Desta forma, o título “Vergonha” remeteria à uma relação sempre culposa e culpada que os homens, particularmente os americanos, manteriam com o sexo.
Acho que esta é uma via de discussão interessante. Entretanto, na minha escrita, tentei priorizar um olhar psicanalítico sobre o grande sofrimento mental apresentado pelo protagonista. Desta forma, sem pretender cair em discussões moralizantes sobre o sexo, não posso deixar de considerar que, tal como Freud já havia sinalizado, a vivência sexual para ser prazerosa e estar à serviço da vida deve vir atrelada à possibilidade de o sujeito vivenciar relações afetivas e construir laços de intimidade com o objeto.
No caso do protagonista, o mesmo parecia incapaz de obter um prazer sexual (e genital) em suas relações. Ao contrário, o ato sexual era buscado como uma forma alucinatória de evacuar angústias intoleráveis, fazendo com que o mesmo ficasse impedido de manter vínculos amorosos em sua vida.