“CATEMBE” – O FILME MAIS CENSURADO DO MUNDO
É português o filme da história do cinema mais cortado pela censura – razão pela qual entrou no Guinness Book of Records. Sofreu 103 cortes, passando de 1h e 20m a 47 minutos e, mesmo assim, a sua projeção foi proibida pelo antigo regime. Só depois do 25 de Abril foi publicamente apresentado e apenas por duas vezes, a primeira das quais numa sessão histórica da Cinemateca - a sala encontrava-se a abarrotar, depois do jornalista Carlos Pinto Coelho ter publicitado o filme numa entrevista ao Canal 2 da RTP. A segunda exibição ocorreu em Setembro de 2010, numa sessão especial promovida pelo movimento Chão no cinema Nimas, em Lisboa. Mas afinal, de que tratava o filme? Primeira (e última) longa-metragem do realizador Manuel Faria de Almeida (natural de Moçambique - nasceu em Lourenço Marques, a 18 de Agosto de 1934), “Catembe” foi filmado em 1965 e pretendia retratar a vida de Lourenço Marques dos anos sessenta, cruzando documentário e ficção, nomeadamente a história de amor entre um pescador negro, de vida miserável, e uma jovem prostituta de raça branca, de nome Catembe (Filomena Lança). Refira-se, de passagem, que “Catembe” era também o nome da região existente frente a Lourenço Marques, do outro lado da baía Espírito Santo.
Ainda o filme não tinha começado a ser rodado e já o seu destino estava traçado. Apesar do apoio financeiro do SNI (Secretariado Nacional de Informação), conseguido pelas Produções Cunha Teles, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) tinha-se já apercebido das intenções em se fazer tal filme e entregue ao então ministro do Interior Santos Júnior uma nota secreta com todos os detalhes. «Apesar do financiamento, havia muito pouco dinheiro», disse Faria de Almeida. «Tinha a planificação e nada era repetido. Tudo era feito à justa. Ainda tentamos alguns apoios junto da Câmara Municipal, mas ninguém deu nada, à excepção do hotel, o Avis, onde ficaram a dormir o Augusto Cabrita e o Tropa. Eu fiquei em casa dos meus pais». E Faria de Almeida recorda ainda: «Na verdade eu sabia que a ideia que em Portugal se fazia de Moçambique era a dos pretos com bandeiras na mão, em alas, deixando passar o Presidente da República vestido de branco, brindado por papelinhos multicolores atirados das varandas. Ninguém sabia como as pessoas ali viviam, que pessoas, como pensavam elas, como se divertiam e quais os seus problemas. Era isto que eu queria mostrar, e pensava que as entidades oficiais tinham percebido a intenção».
As filmagens duraram cerca de três semanas, seguidas de perto pela imprensa local e pelos habitantes da região, que inclusive chegaram a entrar em algumas cenas. Depois de montada a primeira versão, o filme foi visionado por representantes do Ministério do Ultramar, que propuseram algumas emendas. De seguida, foi visto pela Agência Geral do Ultramar, que levantou inúmeros problemas. Faria de Almeida cita um exemplo, tal como vem referido no documento da censura: «Em vários passos das entrevistas feitas no início do filme, os entrevistados referem-se à metrópole falando "em Portugal", como se Lourenço Marques não fosse também Portugal. Crê-se que este inconveniente deverá e poderá ser eliminado». O “inconveniente” foi eliminado, em conjunto com todos os outros. Ao todo, e como já referido, foram 103 cortes no projeto original, que tinha a duração de uma hora e vinte. «Um grupo de entidades visionou o filme cortado e disse que estava bem. Mas, como é evidente, não era possível apresentá-lo assim. Remontei o filme que ficou com 45 minutos», revela Faria de Almeida. No entanto, o esforço foi inglório. A 28 de Fevereiro de 1966 a Censura comunicou ao distribuidor que decidira «suspender o filme por não ser oportuna a sua exibição».
«Eu gosto do filme assim como está mas, quando foi apresentado à Censura que o proibiu, peguei no negativo e depositei-o na Cinemateca». Manuel Faria de Almeida nunca mais fez nenhum filme, embora tenha realizado diversos documentários. A Lourenço Marques só voltou. mais uma vez em trabalho, em 1968. «Fica-se desesperado quando se leva assim um revés. Deixei de pensar em fazer mais filmes». De qualquer forma não fugiu totalmente ao seu destino, traçado desde cedo na terra natal. Foi membro fundador do Cine-Clube de Lourenço Marques em 1957. Mais tarde, contou com o apoio do Fundo do Cinema Nacional para estudar cinema na London School of Film Technique e ganhou o primeiro prêmio do Festival Cinestud de Amesterdão, com o filme feito durante o curso, “Streets of Early Sorrow”, inspirado no massacre de Sharpeville na Africa do Sul. Estagiou em França, no IDHEC (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos) e trabalhou nos arquivos da Cinemateca. Foi presidente da Tobis Portuguesa e do Instituto Português de Cinema, chefiou o Centro de Formação da RTP – Radiotelevisão Portuguesa e participou na criação da Televisão de Macau. Trabalhou ainda no lançamento da Europa TV e da RTP Internacional e passou pela Direção de Programas e Direção de Cooperação. Tem várias obras sobre a história do cinema e sobre realização. A qualidade da obra e o currículo do autor justificam a curiosidade sempre que “Catembe” se mostra. Ainda assim, é com modéstia que Manuel Faria de Almeida se apresenta. «Pouca gente sabe que o filme existe, já foi feito há cinquenta anos. Mas quando se diz que vai passar, ainda há muita gente que o vai ver. E claro que há muitos outros que, com certeza, nem se mexem».
Referem-se, de seguida, alguns excertos de uma entrevista que Faria de Almeida concedeu a Maria do Carmo Piçarra em Fevereiro de 2009, publicada numa edição da revista eletrônica Doc-On-Line:
MCP: Voltando um pouco atrás, fale-me um pouco do Faria de Almeida cineclubista e depois estudante de cinema. Como surgiu a ideia de ir estudar para fora? Que condições lhe foram colocadas pelo Fundo do Cinema?
FA: Fui um dos sócios fundadores do Cine-Clube de Lourenço Marques. Tínhamos a sorte da censura em Lourenço Marques ser muito boa... Nós passamos “O Couraçado Potemkine”, “A Mãe”, todas essas fitas, em pleno Salazarismo. Em 1958 / 59. Entretanto também gostava de fazer filmes, lia muita coisa, estudava o mais possível os livros que havia.
MCP: É corrente a ideia de que não houve em Portugal um cinema de resistência assumida, ideologicamente, ao Estado Novo mas, tal como o Faria de Almeida, que outros autores terão guardados filmes que não foram vistos? O cinema só se cumpre quando se projeta. Quantas obras estão guardadas sem terem sido projetadas?
FA: Eu fui completamente contra o regime... O Lopes Ribeiro a dada altura queria fazer uma série de filmes sobre os quarenta anos da União Nacional. Queria fazer não sei quantos documentários... Talvez uns dez. E na altura pagava muito bem. Pagava 50 contos ao bolso. Eu não fiz. Não me lembro já o que me tinha proposto mas não fiz. Houve colegas meus que fizeram. Eram 50 contos...
MCP: Enquanto esteve em França, o António da Cunha Telles diligenciou por cá no sentido de conseguir o apoio do Fundo do Cinema ao “Catembe”. Como e quando lhe surgiu a ideia para o filme? E o que o inspirou quanto ao uso do Cinema Directo?
FA: Nesse tempo em Inglaterra o Cinema Directo aparecia e via-se o Dziga Vertov. O Fernando Lopes acaba por fazer o “Belarmino” em Cinema Directo. Não sei... Eu gostava muito do Alain Resnais, do Chris Marker e da Agnès Varda.
MCP: Nesse período o regime procura estimular a realização de filmes que promovam as “províncias ultramarinas” na metrópole.
FA: Mas aí também é importante o Cunha Telles, que tinha ocupado um lugar de chefia na Mocidade Portuguesa – não sei como lhe chamavam…Portanto era uma pessoa que inspirava uma certa confiança ao regime. Então se era ele a propor um filme sobre Lourenço Marques, feito por um realizador natural de Lourenço Marques e que tinha sido bolseiro do Fundo, parecia tudo muito bem.
MCP: O Faria de Almeida continuou a filmar documentários esporadicamente?
FA: Depois houve um período bom em que fui trabalhar para a Telecine. Ai fiz alguns documentários. O “Portugal Desconhecido”, por exemplo, que foi o meu terceiro filme a ganhar o Prêmio Paz dos Reis. Fiz, na Telecine, o filme da vida e obra do Ferreira de Castro. Foi um período bom, de trabalho, que eu gostei... Depois houve um período em que havia um homem rico lá em Lourenço Marques que queria fazer em Portugal uma série de cinemas pequenos. Nessa altura os cinemas pequenos eram muito bons. Era o Estúdio, do Império; era o Satélite, do Monumental; onde se podiam exibir filmes de maior qualidade e tinham frequentadores jovens. Comecei a trabalhar para fazer um cinema – que é o Cine-Bolso. Depois deu-se o 25 de Abril e o homem de Moçambique, que era o capitalista, fugiu de lá. Não tinha dinheiro para pagar, uma complicação, e acabou por o vender a uns indianos que puseram lá uns filmes pornográficos. E acabou-se. Aquilo teve para ali quatro ou cinco meses com cinema... Mas enfim, a seguir ao 25 de Abril, também esse tipo de cinema entrou em crise porque começaram a aparecer os filmes semi-pornográficos - o “Emanuelle”, e por aí fora…
MCP: Para o catálogo do ciclo de “Cinema Novo” que a Cinemateca organizou nos anos 80, foi pedido a cada um dos cineastas do movimento que escolhessem os dez filmes portugueses mais importantes de sempre. O Faria de Almeida colocou o “Catembe” na sua lista. Porquê? Por causa do significado simbólico?
FA: Talvez. Já não me lembro dessa lista mas acho que sim. É importante não esquecer.