AZUL É A COR MAIS QUENTE (2013) - CURIOSIDADES SOBRE O FILME
SEXO É A COR MAIS QUENTE
A sequência dura sete minutos, tempo enorme quando se trata de um filme. Duas atrizes, uma menor de idade e outra de 27 anos, fazem sexo sem cortes, sem maquiagem e, ao que parece, sem subterfúgio. A cena é tão espontânea que alguns espectadores juram se tratar de sexo explícito. Mas não é explícito e nem espontâneo. Para chegar àquela atmosfera de alta densidade erótica, as duas atrizes passaram por enormes e duradouros constrangimentos, causados por um diretor obsessivo.
A combinação de erotismo e polêmica criada pelo diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche deu ao longa-metragem francês Azul é a cor mais quente uma notoriedade que quase obscurece as qualidades do filme. Azul narra o amadurecimento de uma estudante de 15 anos, Adèle – interpretada por Adèle Exarchopoulos –, que descobre a sexualidade com uma garota mais velha, a estudante de arte Emma, vivida por Léa Seydoux. O roteiro de Kechiche é livremente adaptado do romance gráfico Le bleu est une couleur chaude (2010), da quadrinista francesa Julie Maroh.
Azul ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Desde a estreia mundial arrebatou a crítica. Em Cannes, o prêmio foi anunciado pelo presidente do júri, o cineasta Steven Spielberg. Ele elogiou o trabalho das duas atrizes, além da sensibilidade de Kechiche em renovar uma história de amor para o século XXI. “Foi um prêmio triplo inédito em Cannes”, disse Adèle. “Não apenas Kechiche, mas Léa e eu recebemos o prêmio. Foi maravilhoso, apesar dos problemas que vivemos.” Os críticos apelidaram Adèle de “nova Brigitte Bardot”. Assim como Brigitte estreou adolescente no fim dos anos 1950, esbanjando erotismo e definindo o modelo da mulher sensual da década seguinte, Adèle, que acaba de completar 20 anos e filmou as cenas tórridas aos 18, tornou-se um símbolo sexual contemporâneo: abusada e decidida, mas reservada. Léa, com o filme, foi reconhecida como uma grande atriz francesa. Com elas, Kechiche alcançou aos 52 anos o prestígio de gênio emergente do cinema. Os três se abraçaram no ato da entrega do prêmio.
Nem tudo foram abraços. O filme deixou sequelas emocionais nas atrizes. Antes da premiação, Léa e Adèle, ambas heterossexuais, disseram a jornais e canais de televisão de Paris que haviam sofrido nas mãos de Kechiche. “Eu me senti como uma prostituta”, afirmou Léa. “Ficamos diante de Kechiche e da equipe técnica repetindo incessantemente cenas de sexo, sete dias por semana, dez horas por dia. Cheguei a ficar cansada de tanto fazer sexo.” Adèle disse que era inexperiente e se deixou manipular. “Não sabia que passaria por isso”, disse. “Quando assisti às cenas, me senti mal porque meus pais e meus amigos me veriam naquela situação de amor lésbico.” Léa contou que o sexo que praticaram não era 100% real.
“Usávamos uma pequena prótese”, disse ao Correio da Manhã de Lisboa. “Tínhamos vaginas falsas... usávamos uma fina membrana de silicone, um molde com a forma de uma vagina. Era um acessório perfeito, um verdadeiro efeito especial... Pode parecer um pouco chocante, mas para nós chegava a ser cansativo.” Adèle afirma que Kechiche gosta de improvisar. “Ele queria que a gente vivesse o papel. Foi uma experiência ultrarrealista. Sou como irmã de Léa, então as cenas de sexo não teriam sido difíceis de fazer, não fosse o perfeccionismo de Kechiche. Léa ficou mais chateada do que eu.”
Kechiche se enfureceu. Escreveu artigos negando ser um tirano e concedeu entrevistas dizendo que Léa era “mimada” e não conseguia “viver sem seu caviar”. Léa é neta do bilionário Jerôme Seydoux, presidente da empresa cinematográfica Pathé, a mais poderosa da França. “É lamentável que meu filme venha cercado desse tipo de controvérsia que prejudica a recepção”, disse Kechiche. “Fiz tudo em nome da arte e da busca sincera do ser. Não explorei as atrizes nem o lesbianismo. O filme trata do amor entre duas pessoas nos dias de hoje. Léa se sentiu mal, porque ela não se entregou ao papel e foi ofuscada por Adèle, que se tornou uma estrela com o filme.” Depois do prêmio, Adèle reconsiderou as reclamações e hoje se sente orgulhosa do que fez. “Kechiche é um gênio”, diz ela. “Só tenho a agradecer a ele pelo que fez com minha carreira. O filme é tão marcante que saí dele transformada. Amadureci. Passarei minha carreira tendo de falar de Adèle.” Léa rompeu com o diretor e ainda não voltou atrás.
No passado, atrizes sofreram experiências de assédio artístico tão ou mais graves do que Adèle e Léa, enquanto faziam alguns dos grandes clássicos do cinema. A francesa Maria Schneider (1952-2011) disse que ficou estigmatizada por causa de O último tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci. Ela tinha 19 anos quando filmou cenas de nudez e sexo anal ao lado de Marlon Brando. “Me senti humilhada e um pouco estuprada por Marlon e Bertolucci.” Se houve simulação em O último tango..., o sexo foi para valer em O império dos sentidos (1976), de Nagisa Oshima, o primeiro filme de arte com sexo explícito. A atriz japonesa Eiko Matsuda se submeteu a Oshima. Sua carreira acabou ali. Proibida de atuar no Japão, mudou-se para a França e só voltou ao Japão ao descobrir um câncer. Aos 61 anos, vive confinada.
Os diretores abusam até em Hollywood, onde os códigos de conduta são mais estritos. Sharon Stone reclamou que o diretor Paul Verhoeven não lhe avisou sobre a cruzada de pernas de Instinto selvagem (1992). Ela conta que deu um tapa em Verhoeven quando viu a tomada que expunha seu sexo e mandou que ele a eliminasse. Ele negou: “Depois que ela ficou famosa com a cena, não reclamou mais”.
Esses e outros episódios fazem pensar nos limites éticos dos diretores. Eles têm direito de violar a intimidade das atrizes em nome da “grande arte”? Oshima (1932-2013), que fez O império dos sentidos, dizia que “quando alguém sente que tudo o que ele queria ver foi revelado, a obscenidade desaparece e acontece uma certa liberação”. Talvez. Mas as biografias ficam marcadas. Para evitar que isso aconteça, o dinamarquês Lars von Trier contratou atores do cinema pornô para fazer as cenas explícitas de Ninfomaníaca. Os céticos dizem que isso é apenas uma reafirmação do conservadorismo. Ele nega. De certo, apenas que sexo e cinema suscitam debates tão intermináveis quanto excitantes.