O CONDE DRÁCULA (1970) E A CONFUSÃO DOS TÍTULOS
Resolvi desatar um nó na cabeça do cinéfilo curioso. Existem dois filmes do mesmo gênero, no mesmo ano, com mesmo nome (nacional) e mesmo ator. A diferença fica a cargo do artigo "O". Foi uma tremenda picaretagem tentando capitalizar em cima do filme da Hammer
CONDE DRÁCULA (1970)
O Titulo original "Nachts, wenn Dracula erwacht" e a direção de Jesús Franco já posicionam o filme na lista dos exploitations comuns na filmografia do diretor. Filmado em co-produção espano-ítalo-germânica, o elenco traz nomes consagrados no gênero como Christopher Lee, Herbert Lom, Klaus Kinski (Lee e Lom nunca se viram durante as filmagens. Eles filmaram todas as suas cenas conjuntas separadamente).
Na história, Jonathan Harker viaja até um castelo numa remota zona da Transilvânia para encontrar-se com seu excêntrico proprietário, o Conde Drácula, que pretende comprar uma nova propriedade na Inglaterra. Aos poucos, Harker começa a perceber que há mais do que excentricidade naquela figura, e seu anfitrião se revela uma terrível criatura que se alimenta de sangue humano.
Uma das mais fiéis adaptações do romance de Bram Stoker, escrita também pelo workaholic Franco. E por ser um dos poucos a tentar revelar nas telas a história original do livro concebido por Bram Stoker em fins do século XIX, esse Drácula (também conhecido como Il Count Dracula ou Bram Stoker’s Count Dracula) merece uma menção especial, quase honrosa, não fosse o fato de ser, em termos gerais, uma produção extremamente medíocre.
É verdade que a história até então nunca havia tido uma versão para o cinema fiel ao original. Tanto o Nosferatu de Murnau quanto o Drácula estrelado por Bela Lugosi foram apenas resumos bem livres do texto, com variações totalmente independentes. Esse Drácula tentou remediar isso, o que não significa que conseguiu.
E ninguém menos que Christopher Lee aparece como um Drácula até que bastante semelhante ao descrito por Stoker, com o bigodão branco característico do personagem e a palma da mão peluda. Contudo, está bem distante da imagem satânica e cruel que criou ao longo de sua bem sucedida carreira enquanto ator na Hammer Films.
Nessa época ele ainda estava na ativa no famoso estúdio inglês de filmes de terror, sendo que já em 1973 voltaria a interpretar o Conde mais uma vez em Os Ritos Satânicos de Drácula (The Satanic Rites of Dracula), um dos piores exemplares da série. Antes desse, porém, em 1972, ele apresentaria o ótimo documentário A Verdadeira História de Drácula (In Search of Dracula), dirigido por Calvin Floyd a partir do livro homônimo dos especialistas em vampirismo Raymond T. McNally e Radu Florescu, segundo o roteiro de Ivonne Floyd.
Em um documentário incluído no DVD, o diretor Jesús Franco afirma que Klaus Kinski comeu moscas reais como Renfield em vez de falsas. A primeira escolha do para o papel do Dr. Abraham Van Helsing foi Vincent Price. Ele não conseguiu devido ao seu contrato exclusivo com a American International Pictures, e a segunda escolha, Dennis Price, foi forçado a desistir por causa da doença que o tragou em 6 de outubro de 1973. Franco recorreu a sua terceira escolha, Herbert Lom.
Klaus Kinski (Renfield) interpretou Drácula alguns anos depois na obra prima Nosferatu: O Vampiro da Noite (1979). Este é o primeiro papel importante de Soledad Miranda em um filme de Jesus Franco, embora ela tenha feito um papel menor não creditado em seu filme Queen of the Tabarin Club (1960) quando ela tinha 16 anos. Ela então estrelou uma série de seis thrillers eróticos para Franco, todos feitos no período de um ano em 1970. Ela então morreu em um trágico acidente automobilístico em Portugal naquele mesmo ano, no momento em que sua carreira estava decolando.
Enquanto isso,
Scars od Drácula, com direção de Roy Ward Baker e um elenco que incluía Christopher Lee, Dennis Waterman, Jenny Hanley aportava no Reino Unido.
O Conde Drácula, agora com artigo na frente, renasce das cinzas para atormentar os moradores de um pequeno vilarejo da Inglaterra. Um jovem fugitivo da polícia esconde-se no castelo do vampiro sem saber o que o espera. O povo revoltado invade o castelo e tenta destruir o antro de perversão do monstro. Porém, o Príncipe das Trevas está de volta mais terrível do que nunca e dará início a um ritual sádico e perverso em busca de vingança. Christopher Lee mais uma vez representa seu mais importante papel no cinema, no filme considerado o mais violento da série.
O apelo a sangue é visível em algumas cenas, quase já prenunciando os filmes de horror das décadas seguintes, como o clássico O Massacre da Serra Elétrica, etc. A representação estética do horror clássico incorpora elementos impressionistas, quase decadentistas. Mas não é apenas o decor que é atingido pelo novo espírito do tempo. A própria caracterização de Drácula possui uma gradação sutil, quase imperceptível de cores.
O vampiro é apenas um inimigo pavoroso que mora ao lado, alguém com a qual a comunidade local convive, mas à distância. É um estranho tolerável que apenas se procura evitar. A passividade da população local atinge até mesmo a figura do padre, que evita enfrentar o vampiro, apelando apenas para orações não muito eficientes. É uma figura passiva e resignada, mas ainda horrorizada, com a representação do Mal (é bastante evidente o contraste com a figura ativa do padre Sandor, de “Drácula, o príncipe das trevas”).
Drácula seria a própria modernidade perversa, tolerável em sua absurdidade ontológica. Falta no filme “Conde Drácula”, a insurgência humana típica contra o Mal. Mesmo quando ela ocorre, é assistemática, casual e oportunista. Novamente os atingidos são jovens incautos sempre jovens casais perdidos e totalmente ignorantes sobre os perigos do castelo macabro. Não é perceptível uma “ciência” do vampiro, técnicas para combate-lo. Até certo momento, o poder de Drácula é quase absoluto. No final, ele é derrotado, casualmente, por um raio que atinge uma lança de metal em suas mãos. O vampiro morre eletrocutado.
O filme vincula a libido e a cor vermelha (de sangue, mas também da insurgência operária?) com o Mal de Drácula (é curioso que as vitimas de Drácula, no filme, são sempre personagens de caráter libertino, como o jovem Paul Carlson e a filha do dono da estalagem local, o que sugere um enredo moralista).
A caracterização de Klove é curiosa. Diferentemente do Klove de “Drácula – Príncipe das Trevas”, o serviçal de Drácula é um personagem desgrenhado, nada parecido com o estilo clássico do mordomo Klove do filme de 1965. Aqui ele é quase voyeur, fascinado pela gravura da bela jovem Sarah Fremsen, próxima vítima de Drácula. É por ela que Klove se insurge contra o Mestre.
É um detalhe curioso, pois demonstra que, apesar do poder quase absoluto de Drácula sobre seus “discípulos”, ele enfrenta dissensões em suas próprias hostes discipulares. Klove é movido pelo desejo reprimido e pelo ódio ressentido pelo Mestre que o trata como um animal. Enfim, é uma caracterização decadentista do serviçal de Drácula.
A diferença de decor e de caracterização entre os dois filmes da série Drácula da Hammer não é meramente casual. Decorre de uma forma particular-concreta de se apropriar do caractere clássico da figura de Drácula, mediada pelo espírito do tempo histórico, de crise do mundo burguês, de elementos do entorno político e cultural que se incrustam no enredo e no estilo do vampiro.
O interessante da série da Hammer é que ela cobre todo um período significativo do capitalismo do século XX, do seu ápice até sua crise, relativa a modernidade. Em contra partida, o filme de Franco buscou ser mais fidedigno, porém a produção ficou sem grana muito antes de terminar, e como consequência, e empobrecimento de muitas cenas. Mas se levarmos em conta que a ressurreição de Drácula no início do filme da Hammer é a mesma filmagem da morte de Drácula em O Sangue de Drácula (lançado no mesmo ano), mas simplesmente reproduzida ao contrário, podemos concluir que todas estas produções bebiam da mesma fonte, que dava pouco valor ao cinema B de horror.
E para quem acha que dois Dráculas no mesmo ano foi um erro estratégico, na realidade, foram 4, interpretados pelo próprio Lee: Uma dupla em sinuca, O Sangue de Drácula, O Conde Drácula e claro, Conde Drácula. E hoje em dia, há quem reclame que a Marvel lança filme demais. Vai entender.