ANTEBELLUM: A ESCOLHIDA (2020) - FILM REVIEW
Texto: M.V.Pacheco
Revisão: Thais A.F. Melo
O passado nunca está morto. Nem sequer é passado... William Faulkner
Com esta frase, Antebellum se inicia em meio a um poderoso tour mostrando diversos momentos que resumem os horrores da escravidão. Um belíssimo plano sequência que nos brinda com uma informação preciosa: entre a propriedade dos donos do local e as cabanas dos escravos não há cortes. E isto ocorre simplesmente porque vivemos no mesmo mundo.
E ainda somos obrigados a tentar entender o que significa Antebellum, dando um ar místico a um período já conhecido. Mas a realidade é simples, o que faz o cinema buscar alternativas de contar o crime de maneiras diferentes, inventivas, criativas. Para se ter uma ideia, Antebellum significa algo que existe antes do período da Guerra Civil Americana.
Na trama do filme, que por aqui ganhou o subtítulo de "A Escolhida", acompanhamos uma plantação de escravos da Louisiana administrada por soldados confederados. Os escravos são tratados com severidade e não têm permissão para falar, a menos que falem com eles. Aqueles que tentam escapar são mortos e seus corpos queimados em um crematório.
Após uma tentativa fracassada de fuga, um homem negro chamado Eli, observa sua esposa ser assassinada e seu corpo colocado no crematório. Uma mulher que os ajudava é mais tarde brutalmente espancada e marcada pelo general até se submeter a ser chamada de Éden.
Um salto no tempo, e somos apresentados à Veronica (Janelle Monáe), uma jovem mãe e autora de sucesso que precisa arrumar suas malas para ir promover o novo livro em uma turnê pelos Estados Unidos. Mesmo resistindo em deixar a família para trás, ela decide embarcar na jornada profissional.
No entanto, um pesadelo recente tem assombrado sua vida. Na noite anterior, Veronica sonhou que era Eden, uma mulher escrava em Louisiana vivendo em condições terríveis do passado.
Com o passar do tempo, ela percebe que, na verdade, está presa entre as duas realidades, vivendo os tempos modernos e presenciando o horror das plantações do sul durante a escravidão. Agora Veronica precisa descobrir o mistério por trás dos acontecimentos para conseguir fugir antes que seja tarde demais.
Nem a frase de Faulkner foi aleatória.
Utilizando a técnica do fluxo de consciência, consagrada por James Joyce, Virginia Woolf, Marcel Proust e Thomas Mann; Faulkner narrou a decadência do sul dos Estados Unidos, interiorizando-a em seus personagens, a maioria deles vivendo situações desesperadoras no condado imaginário de Yoknapatawpha. Por muitas vezes, descrever múltiplos pontos de vista (não raro, simultaneamente) e impor bruscas mudanças de tempo narrativo, a obra faulkneriana é tida como extremamente complexa e desafiadora.
E Antebellum segue este caminho.
O pôster é uma referência a Efeito Borboleta (2004) e O Silêncio dos Inocentes (1991). E de certa forma, o primeiro filme que me vem a mente é Efeito Borboleta, pois temos a nítida sensação que a personagem vai e volta no tempo, como se sua consciência migrasse de uma época para a outra.
Enquanto Verônica está conversando pelo Skype com Elizabeth, seu marido pergunta o que ela quer para o café da manhã e ela responde com panquecas veganas. Janelle Monáe na realidade também é vegana.
A única coisa que temos a perder são nossas correntes.
Gerard Bush teve a ideia de um pesadelo que teve uma vez. Ele inicialmente pensou que seria uma boa base para um conto, porém mais tarde desenvolveu-o com o co-diretor Christopher Renz em um roteiro para um longa-metragem. Os diretores adquiriram as mesmas lentes usadas para filmar... E o Vento Levou (1939), para criar a mesma sensação daquele filme, mas, ao mesmo tempo, "corrigir imprecisões", mostrando uma representação mais precisa do período anterior à guerra, especialmente o tratamento dado aos escravos.
Apesar do marketing sugerir o nome de Jordan Peele, ele não teve envolvimento direto com este filme. O produtor em questão é Sean McKittrick, que produziu Corra! (2017) e Nós (2019). Originalmente programado para ser lançado nos cinemas, o filme foi direto para o streaming, lançado em 18 de setembro de 2020, devido à pandemia mundial em curso.
Em referência ao aborto de Julia na história, Bush disse que era importante que este filme sobre mulheres negras abordasse o racismo médico. Muitas mulheres escravizadas se enforcariam em vez de ver seus filhos nascerem na escravidão.
A imagem do batom, que fica inexplicável no filme, pretendia ser uma metáfora para a relação entre mulheres brancas e negras: "A razão pela qual colocamos isso no filme é que queríamos demonstrar como - e quero dizer isso da forma mais diplomática possível - existem mulheres brancas que cobiçam a mulher negra, quando esta é bem sucedida".
Os soldados no primeiro ato do filme começam a entoar as palavras Sangue e Terra, frase usada pelos manifestantes de Charlottesville em 2017. Ela é um slogan nacionalista que expressava o ideal da Alemanha nazista de um corpo nacional definido "racialmente" (representado por “sangue”) unida a uma área de assentamento (representada pela “terra”). Este detalhe prenuncia que a plantação onde Verônica está presa não é real que tudo acontece nos dias de hoje.
Julia tem uma tatuagem de borboleta no tornozelo. Esta não é apenas mais uma pista de que a plantação não é real, mas também contém simbolismo: “A tatuagem de borboleta representava que Julia, personagem de Kiersey Clemons, era uma discípula, uma crente, uma seguidora daquela doutrina de Veronica Henley, da persona de enfrentamento.
Então, quando ela diz: 'Eu conheço você. Você é quem pode nos tirar daqui. Por que você está agindo assim?' - É porque ela a conhece - disse Gerard Bush. O motivo da borboleta continua no filme, já que a imagem da capa do livro de Verônica é uma borboleta, representando uma mudança ou uma metamorfose.
Se olhar atentamente durante as cenas do hotel, você verá que muitos dos convidados são participantes da falsa plantação onde Veronica está sendo mantida em cativeiro. O concierge do hotel, por exemplo, também está com Elizabeth no parque, na sala de jantar. Também há integrantes do parque de reconstituição na plateia do discurso de Verônica e no restaurante. Isso mostra que eles a observaram de perto o tempo todo.
O professor Tarasai (ou Eli) começa a assobiar uma música enquanto está no campo, e então os outros escravos começam a assobiar também. O que eles estão assobiando é "Lift Every Voice And Sing". A música, que se originou como um poema de James Weldon Johnson, só foi criada depois do fim da era anterior à guerra. Esta é mais uma pista de que a plantação não é realmente real.
A garotinha loira (interpretada por Arabella Landrum) é filha de Elizabeth (Jena Malone). Quando a vemos pela primeira vez no filme nos dias atuais, ela está usando um vestido branco e desbotado para sugerir que ela é um fantasma. A sugestão é que Elizabeth a está criando para ser uma supremacista branca racista assim como ela, e como se o sul anterior à guerra ainda existisse. A menina também segura um brinquedo racista, uma boneca de pano que parece um estereótipo de mamãe.
Logo após a cena em que a menina aparece, Veronica e suas amigas são quase atropeladas por uma carroça, sugerindo um passado se fundindo com o presente. Isto remete ao fato de que o racismo é atemporal.
No final, o título do filme é explicado como sendo o nome do parque de reconstituição da Guerra Civil, onde negros sequestrados são forçados a trabalhar como escravos para brancos. O nome do parque é, portanto, interpretado de forma muito literal pelos seus proprietários: eles não estão apenas a recriar o período, mas também restabeleceram ativamente uma sociedade pré-Guerra Civil que restaurou o seu direito de possuir e maltratar os negros como escravos.
Esta reviravolta final lembra muito a do filme A Vila (2004) de M. Night Shyamalan, onde se descobre que a vila do século XIX onde os personagens vivem é, na verdade, uma farsa e o filme se passa atualmente. Porém, com finalidades diferentes.
Em A Vila, os moradores sofrem perdas pessoais e decidem se isolar do mundo, recriando um passado distante. Já em Antebellum, os brancos que não aceitam a liberdade dos negros recriam a época da escravidão em um local afastado, e sequestram pessoas para escravizá-las.
A escolhida é um belo filme para discutir as diferenças entre o comportamento dos escravistas na época da escravidão e o comportamento dos racistas preconceituosos e supremacistas dos dias atuais.
Porque se pensarmos bem, o que muda é apenas o cenário.
Isso não acaba aqui... estamos em lugar nenhum... e em todo lugar...