A CRIATURA DO CEMITÉRIO (1990) - FILM REVIEW
Texto: M.V.Pacheco e Thais A.F. Melo
Revisão: Thais A.F. Melo
Há um meme que circula na internet em que um filme é definido em 3 imagens. Criatura do Cemitério poderia, ser facilmente definido em duas, afinal, a história não poderia ser mais simples e objetiva: pessoas são mortas por um rato mutante.
Mas claro, podemos detalhar melhor: uma fábrica têxtil de tecelagem, fechada há anos, é reaberta por um estranho dono que parece saber de um segredo que ninguém pode imaginar estar enterrado naquele local. Quando o calor do verão se torna insuportável e os funcionários resolvem trabalhar no turno da noite, uma criatura sanguinária passa a atacá-los no interior do lugar.
Tão simples quanto parece, mas não menos especial para os fãs de Stephen King.
O filme foi rodado na vila de Harmony, Maine, na Bartlettyarns Inc., a mais antiga fábrica de fios de lã dos Estados Unidos (est. 1821). A histórica fábrica de Bartlett foi rebatizada como "Bachman" para o filme, uma homenagem ao pseudônimo de King, Richard Bachman. As tomadas internas da antiga maquinaria do moinho e do cemitério ribeirinho foram feitas em Harmony.
Outras cenas (interior do restaurante e máquina gigante de colheita de lã foram em locações em Bangor, Maine, em um sistema de distribuição de água e um arsenal abandonados. Algumas outras cenas da fábrica foram encenadas perto da fábrica de lã Eastland em Corinna, Maine.
A criatura é um rato mutante com asas de morcego. A explicação, conforme o conto, é que os ratos no subsolo (sob o alçapão) viveram tanto tempo na escuridão que ficaram cegos, perderam as patas traseiras e ficaram gigantescos, alguns com mais de um metro de altura. Há também os que parecem ser morcegos, mas do tamanho de corvos.
O design da criatura é bem interessante: ao contrário dos ratos ao qual ela se originou, não há pelos. Além disso, sua aparência é singular, sua pele remete às paredes de órgãos internos, como se ela fosse feita de dentro para fora, criando uma sensação maior de repulsa no espectador. O visual da fábrica ainda completa o desconforto, sendo um local sujo e úmido com uma abundância de ratos, poeira, teias de aranha e objetos amontoados por todas as partes.
Quem assiste ao filme, decerto, sentiu-se sufocar com a quantidade de informações visuais e o pouco espaço ao qual os personagens tinham para transitar. Além da sensação infindável de contaminação, visto que, a fábrica era alagada e os ratos circulavam livremente. Como bem sabemos, a leptospirose é transmitida pela urina, especialmente desses roedores.
Tudo isso, cria uma gênese para a formação da criatura. Como se a própria fábrica fosse seu genitor. O ambiente insalubre, a imundice, as condições subumanas de ofício dos trabalhadores e sua conexão com o cemitério - todos esses fatos e elementos acabassem por gerar o monstro de A Criatura do Cemitério.
Gore
Traduzindo do inglês, gore é um termo usado de várias maneiras, entre elas para indicar “sangue coagulado”. O termo gore (também conhecido como Splatter) é constantemente associado ao terror por razões bem simples, já que o uso de violência gráfica com o intuito de provocar no espectador sentimentos de repulsa e espanto não é recente.
Não havia melhor maneira de tentar ganhar o público, contando uma história tão simples, do que levá-la pelos caminhos tortuosos do gore, ainda que seja um subgênero do horror com menos simpatia que um slasher, por exemplo. As obras de King flertam com o gore de forma tímida, ainda que no cinema tenha cenas absolutamente memoráveis, como o sangue jorrando do elevador em O Iluminado (1980) ou do banheiro ensanguentado que remete aos abusos vividos por Beverly em It - A coisa (2017).
É historicamente comprovado que a violência, o sofrimento e a morte são apreciados pela humanidade desde muito tempo. Na antiga Roma, os famosos coliseus atraíam centenas e até milhares de espectadores para assistirem escravos lutarem contra animais famintos e se dilaceraram uns contra os outros; cristãos eram executados publicamente. E não pense que isto seja um pensamento momentâneo: durante a Revolução Francesa os inimigos foram decapitados como verdadeiras atrações populares.
A literatura e o cinema, por fim, podem até ser considerados modos mais saudáveis de atender a sede e a fome humanas por sangue e tripas, um sentimento reprimido por valores morais, mas ainda atuante através do instinto de autopreservação e do medo de agressões ao próprio corpo. O que antes era algo impensável de se mencionar ou representar, agora surge com frequência graças a uma banalização da violência. Porém, não estamos discutindo a violência em si, mas uma das suas representações mais radicais, o gore.
Um pouco antes do gênero ganhar corpo, a cultura americana era patrulhada pelo código Hays, idealizado por William H. Hays, que tinha a proposta de preservar os valores morais e familiares, proibindo a reprodução de cenas de assassinatos, o mesmo valendo para as demais infrações criminais, as cenas de sexo e de nudismo, de consumo de álcool, de profanação e tantas outras condições imorais ou deprimentes para os padrões da época.
Com o fim desta autocensura, em 1967, os produtores se viram livres para poderem experimentar e se deslumbrar com as possibilidades artísticas reprimidas pela Guerra Fria. No final da década de 1960 e começo de 1970, o uso do sangue e da sexualidade, bem como encenações que profanavam a fé cristã, foram os primeiros elementos a se destacarem, como pode ser visto em célebres produções como O Bebê de Rosemary, Carrie - A estranha (de King, claro) e O Exorcista.
Com um background histórico pertinente, e sem o realismo perverso das produções atuais, Criatura do Cemitério é bem mais interessante visto hoje, quando contrastado com o realismo dominante que causa mais repulsa que o próprio gore.
De certa forma, Criatura do Cemitério se assemelha bastante a outro filme de monstro, Alien³, lançado dois anos depois, e dirigido por ninguém menos que David Fincher (de Clube da Luta, Seven - os 7 Crimes Capitais e O Curioso Caso de Benjamin Button). Nos dois filmes, uma criatura ceifa a vida de um a um e ambos se passam em um local labiríntico, com estética suja e desesperançosa.
No elenco, duas figuras icônicas: Andrew Divoff (que viria a se eternizar como um Djinn em O Mestre dos Desejos) e Brad Dourif (o protagonista original e alma eterna do brinquedo assassino Chucky) como o exterminador de pragas que mais parece um Caça-fantasmas desprovido de recursos.
Enfim, Criatura do Cemitério não foi feito para mudar sua vida. Mas se pensarmos bem, não era a função do filme. E muito menos, pretensão.